terça-feira, 1 de março de 2016

PNAIC : Ciência,coisa boa



Ciência,coisa boa
                    Rubem Alves

Fernando Pessoa dizia que “pensar é estar doente dos olhos”. No que eu concordo. E até um pouco: “pensar é estar doente do corpo”. O pensamento marca o lugar da enfermidade. Ah! Você duvida. O meu palpite é que, neste preciso momento, você não deva estar tendo pensamentos sobre os seus dentes, a menos que um deles esteja doendo. Quando os dentes estão bons não pensamos neles. Como se eles fossem inexistentes. O mesmo com os olhos. Você só tomará consciência deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalhações. Quando os olhos estão bem a gente não pensa neles: eles se tornam transparentes, invisíveis, desconhecidos, e através de sua absoluta transparência e invisibilidade o mundo aparece. O corpo inteiro é assim. Quando está bom, sem pedras no sapato, sem cálculos renais ou hemorróidas, sem taquicardias ou enxaquecas, ele fica também transparente, e a gente se coloca inteiramente, não nele, mas na coisa de fora: o caqui, a árvore, o poema, o corpo do outro, a música. Quando o corpo está bem ele não conhece. Claro que tem pensamentos; mas são pensamentos de outro tipo, de puro gozo, expressivo de uma harmonia que não deve ser perturbada por nenhuma atividade epistemológica.

Mas basta aparecer a dor para que tudo se altere. A dor indica que um problema apareceu. A vida não vai bem. É aquela perturbação estomacal, mal-estar terrível, vontade de vomitar, e vem logo a pergunta: “Que foi que comi? Será que bebi demais? Ou teria sido a lingüiça frita? Pode ser, também, que tudo tenha sido provocado por aquela contrariedade que tive...” Estas perguntas que fazemos Diante de um problema, são aquilo que na linguagem cientifica recebe o nome de hipóteses. Hipótese é o conjunto de peças imaginárias de um quebra-cabeças, que acrescentamos àquela que já temos em mãos com o propósito de compreendê-la. Compreender, evidentemente, para evitar que o incômodo se repita. Pensar para não sofrer. Deve haver, no universo, milhões e milhões de situações que nunca passaram pela nossa cabeça: nunca tomamos consciência delas, nunca as conhecemos. É que elas nunca nos incomodaram, não perturbaram o corpo, não lhe produziram dor. Só conhecemos aquilo que incomoda. Não, estou dizendo toda a verdade. Não é só da dor. Do prazer também. Você vai almoçar numa casa e lá lhe oferecem um prato divino, que dá ao seu corpo sensações novas de gosto e olfato. Vem logo a idéia: “Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este prazer. E, infelizmente, não posso pedir para continuar a ser convidado.” Usamos então a fórmula clássica: “- Que delícia: eu quero a receita...” Traduzindo, para os nossos propósitos: “Quero possuir um conhecimento que me possibilite repetir um prazer já tido.” O conhecimento tem sempre o caráter de receita culinária. Uma receita tem a função de permitir a repetição de uma experiência de prazer. Mas quem pede a repetição não é intelecto. É o corpo. Na verdade, o intelecto puro odeia a repetição. Está sempre atrás de novidades. Uma vez de posse de um determinado conhecimento ele não o fica repassando e repassando. “Já sei”, ele diz, e prossegue para coisas diferentes. Com o corpo acontece o contrário. Ele não recusa um copo de vinho dizendo que daquele já bebeu, e nem se recusa a ouvir uma música, dizendo que já a ouviu antes, e nem rejeita fazer amor, sob a alegação de já ter feito uma vez. Uma vez só não chega. O corpo trabalha em cima da lógica do prazer. E, do ponto de vista do prazer, o que é bom tem de ser repetido, indefinidamente.

O desejo de conhecer é um servo do desejo de prazer. Conhecer por conhecer é um contra-senso.

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